A palavra aramaica "Abba" - que significa papai - expressa muito bem quem é o verdadeiro Deus dos cristãos: Aquele que quer se relacionar conosco como o nosso Papai, o Deus que é amor incondicional...





sábado, 18 de dezembro de 2010

As casas e as verdades



               Assim como uma casa se faz com tijolos, mas uma pilha de tijolos não é uma casa, também uma verdade cristã se faz com versículos – mas um amontoado de versículos não equivale necessariamente a uma verdade bíblica.

              Era uma manhã ensolarada e a caminhada já se estendia. A cidade estava logo ali. Antes da chegada, a fome. E depois da fome, uma figueira. Jesus se aproxima da planta esperando colher algum fruto. Mas encontrou apenas folhas. Não teve dó nem piedade – amaldiçoou a figueira, e deixou seus discípulos assombrados. Depois deu uma bronca em todo mundo e vaticinou: quem tiver fé, ainda que do tamanho de um grão de mostarda, vai mandar esse monte sair do lugar e ele vai obedecer. No meio dessa coisa toda, Jesus ainda encontra tempo para, literalmente, chutar o balde dos comerciantes do templo, que haviam transformado a casa do Pai em covil de ladrões

             O que uma cidade, uma figueira, um monte, um templo e a fé estão fazendo juntos nesta cena? Aliás, observe. Caso não tenha percebido, eles estão juntos. Não são episódios estanques, separados: o da figueira, o do templo e o aforismo sobre a fé. São peças de um quebra-cabeças que, montadas, deixam claro como o sol do meio-dia o que Jesus estava querendo dizer. Já, já, a gente chega lá. Mas quero contar outra história. Certa ocasião, Cristo se deparou com um homem dominado por espíritos malignos. “Legião”, disseram, ao responder qual era seu nome. Diante do Filho do Deus Altíssimo, os demônios pediram que Jesus os deixasse entrar nos porcos, perto de dois mil. Jesus consentiu. Em seguida, os porcos se lançaram ao lago de Genezaré e se afogaram. O pessoal da região ficou louco da vida com Jesus e pediu que ele fosse embora daquele lugar.

             Não tenho dúvidas de que você já ouviu e leu centenas de meditações baseadas nestes dois episódios da caminhada de Jesus com seus discípulos. Provavelmente, alguém já disse que seus problemas são como aquele monte citado pelo Mestre, e que podem ser superados pela fé. Não importam quais sejam seus embaraços, seus problemas, suas angústias e as razões do seu sofrimento; basta ter fé. Afinal, a fé remove montanhas, isto é, com fé a gente vence qualquer dificuldade.

             Também deve ter ouvido a respeito da autoridade de Jesus sobre os espíritos malignos, o que é absolutamente verdadeiro. E não é pouca autoridade, não. O Senhor deu conta de expulsar dois mil demônios de um homem de uma vez só. Eles fizeram fila e saíram um de cada vez. Então, imagine o que Cristo não é capaz de fazer com um demoniozinho tupiniquim! Principalmente, no palco de uma igreja evangélica. Com base na história do gadareno e sob a intercessão das mãos estendidas dos fiéis, os pastores se enchem de coragem e repetem sua fórmula infalível: “Sai desse corpo que não te pertence”.

            Será que estes episódios se prestam apenas a ensinar a respeito do poder da fé para vencer dificuldades na vida e acerca da autoridade de Jesus sobre o diabo e seus asseclas? Ou haveria algo mais nas entrelinhas das narrativas? Fico com a segunda alternativa: os Evangelhos – decerto, a Bíblia toda – contêm linguagem cifrada, códigos secretos que comunicam verdades profundas, perfeitamente percebidas pelos circunstantes, porém raramente alcançadas pelos leitores contemporâneos.

            Mas, e a figueira, a cidade, o templo? O que fazer com essas figuras? Vamos lá. Primeiro, o caso da figueira. Sabemos que essa árvore é um símbolo que identifica a nação de Israel. Assim também a cidade, o templo, e o monte. A cidade é Jerusalém, onde está o Templo de Salomão, no monte Sião. Jesus faz a limpa, cumprindo a profecia de Malaquias – “Logo virá ao seu templo o Senhor, a quem vós buscais” – e a de Zacarias: “E, naquele dia, não haverá mais mercadores na casa do Senhor dos exércitos”.

            Jesus deixa claro que Israel é uma figueira estéril, sem frutos, o que é demonstrado pela profanação do Templo e deturpação de sua religião. A nação é amaldiçoada; Sião deixará de ser o centro da revelação de Deus e Israel será preterida por um povo com quem Deus celebrará uma nova aliança – em Jesus, e não mais em Moisés: “É evidente que pela lei ninguém será justificado diante de Deus, porque o justo viverá da fé”.

            A fé que remove montanha não é a fé individual, aquela porção de fé de cada crente, mas coletiva, do povo da nova aliança: “Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos crentes. Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar. De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos justificados. Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio. Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Sabei, pois, que os que são da fé são filhos de Abraão”.

            O monte removido pela fé não é a dificuldade particular de cada crente, mas Sião, o monte santo, que não se abala – ou melhor, não se abalava, até que Israel rejeitou o Messias, que conforme a Escritura, veio para os seus, mas não foi recebido por eles. Em Cristo, a Igreja – o povo da fé – recebe todos os títulos que pertenciam a Israel: “Geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido”. A fé remove o Monte Sião. Portanto, da próxima vez que alguém lhe disser que a fé remove montanhas, diga que já removeu. Sião não é mais o que era. A figueira secou. E nasceu a Igreja, povo de Deus, povo da fé.

            A mesma coisa acontece com a história do endemoninhado gadareno. Os espíritos imundos chamam a si mesmos de Legião, numa clara e explícita referência ao poderio militar romano. Assim como os opressores egípcios se afogaram no Mar Vermelho, quando com mão forte Yahweh libertou Israel pelas mãos de Moisés, também os opressores romanos estavam se afogando no Mar da Galiléia, sob as ordens daquele que ousou pronunciar “ouvistes o que foi dito por Moisés; eu, o Messias, porém, vos digo”.

             Da próxima vez que alguém lhe disser que Jesus é maior que os demônios, concorde. Mas acrescente – ele é também maior que Moisés. E maior que o Egito, a Babilônia, a Pérsia. É também maior que Roma. Maior que os espíritos malignos que agem nas entranhas do mundo, que jaz no maligno. E, porque maior que tudo e todos, é Senhor e libertador, aqui e agora, ali e além; Rei de um reino que não terá fim.

             Assim como uma casa se faz com tijolos, mas uma pilha de tijolos não é uma casa, também uma verdade cristã se faz com versículos – mas um amontoado de versículos não equivale necessariamente a uma verdade bíblica. Uma casa é resultado de um processo inteligente de ordenação harmoniosa de tijolos, todos agrupados conforme determinado projeto. Assim também, a verdade do Evangelho possui sua lógica. Fora dessa lógica intrínseca, versículos não passam de tijolos.

Ed René Kivitz

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